FESTA DA BOA MORTE
A FESTA DA BOA MORTE: UMA REFLEXÃO FOTOGRÁFICA DA MANIFESTAÇÃO RELIGIOSA DO RECÔNCAVO
Ellen Ayara Souza | Mestranda do PPGCOM
Criada desde 1820, a Irmandade da Boa Morte é uma confraria religiosa afrocatólica que originalmente foi responsável pela alforria de determinadas pessoas que foram colocadas em situação de escravidão. Esse grupo, composto unicamente por mulheres negras, vislumbra a força e resistência da Irmandade ao longo de mais de 200 anos. Elas seguem tradicionalmente a missão social, dedicada à educação, empoderamento de mulheres, combate ao racismo e intolerância religiosa, preservando princípios e práticas de resistência contra a qualquer tipo de intervenção patriarcal - tendo como regra a exaltação do matriarcado.
Posicionar-se enquanto agentes de produções acadêmicas diante das manifestações culturais religiosas é fundamental para promover a compreensão da diversidade cultural, preservar o patrimônio cultural, estabelecer diálogos interdisciplinares, combater o preconceito, intolerância e contribuir para políticas públicas mais inclusivas e assertivas. Sendo assim, achamos interessante relacionar essa tradição histórica e local, dialogando com discussões pertinentes ao campo da comunicação, aos registros sensíveis acionados a partir das fotografias de manifestação cultural.
Tecendo memória
Tomamos o exemplo da fotógrafa Camilla Souza, que busca através dos seus registros, refletir sobre a memória coletiva e tessituras entre passado e presente na cidade de Cachoeira-Ba. Mulher preta, nascida e criada na cidade, começou a fotografar desde 2013 e foi através dessa prática que desenvolveu o olhar para visibilizar as potências femininas local. “Sempre fui apaixonada pela minha cidade e tudo o que nela acontecia: festas, manifestações, tradições”. A partir dessas fotografias, a Festa da Boa Morte, despertou nela a admiração e a sensação de responsabilidade em manter as tradições culturais e valores da comunidade. “É singular a força e imponência que essas mulheres pretas inspiram somente em sua presença, suas vestes, gestuais”, completa.
Há mulheres que encontram empoderamento em sua cultura e buscam preservar e promover suas tradições e identidades culturais. Elas são defensoras da preservação da história e das práticas culturais, ao mesmo tempo em que desafiam os aspectos conservadores e discriminatórios dentro de suas próprias comunidades, Camilla é uma delas. Quando questionada sobre a sua experiência de registrá-las ela afirma que é sempre única, mesmo que as celebrações aconteçam seguindo os mesmos ritos e nas mesmas datas, “a cada registro, sinto como se estivesse contribuindo para a preservação da Irmandade, da memória destas mulheres, que tanto representam a nossa identidade”, afirma.
A ética na fotografia cultural
As experiências da profissional nesses registros demonstram que para além da sua sensibilidade ela está ciente das especificidades culturais e religiosas envolvidas na manifestação cultural. Sabe que precisa respeitar os costumes e crenças das pessoas que estão sendo registradas, para evitar que qualquer representação equivocada ofenda esses corpos. “Uma das coisas que sempre observei e me incomodou nesse processo de observação participante e de registro, é a forma invasiva com que algumas pessoas fazem fotos e vídeos das irmãs da Boa Morte. Já vi cenas em que, literalmente, a câmera foi colocada em cima do rosto delas sem qualquer anuência, sem nem mesmo saber se isso as incomodaria", salienta.
É por esse motivo que ao fazer os seus registros, ela costuma sempre respeitar esse espaço delas, por se tratar de mulheres, em sua maioria idosas, e que estão ali também em um momento de devoção e oração e precisam ter a sua religiosidade e corpos respeitados. “Procuro sempre ter o cuidado de fazer contato com elas, estabelecer algum tipo de interação, sem invadir. Suas imagens não devem ser tratadas como mercadoria”. Em resumo, a experiência de uma mulher no registro de questões culturais pode variar amplamente, dependendo de fatores como sua comunidade, contexto cultural e próprias escolhas e perspectivas individuais.
----